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A maldição de Ondina



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Sinopse

ANTÓNIO CABRITA E O FUTURO DA LUSOFONIA - Posfácio de Adelto Gonçalves
A África não dorme. Vive em eterna vigília. Essa é a metáfora que explica A Maldição de Ondina, do português-moçambicano António Cabrita (1959), livro que tem tudo para empolgar o leitor brasileiro não só por suas qualidades literárias como pelas marcas de várias culturas afins ao Brasil que impregnam suas páginas. Como toda boa metáfora, o título A Maldição de Ondina tem duplo sentido. Ou seja, explica o fenômeno que faz parte da natureza intrínseca dos golfinhos, mamíferos que não podem dormir jamais, já que, para sobreviver, necessitam vir à tona de cinco em cinco minutos para respirar. E, portanto, não podem esquecer a condição em que vivem, sob o risco de desaparecerem.

Não se pode esquecer que a referência à Ondina, ninfa das águas na mitologia germânica, serve também para qualificar uma rara síndrome – em 2006, havia apenas 200 casos conhecidos no mundo –, cujas formas graves exigem que a pessoa receba ventilação mecânica 24 horas por dia. Ou seja: vigília ininterrupta.

Mas explica também o sentir e o estar africano ao longo dos séculos. Um povo – feito de muitas nações, etnias e tradições milenares – que está condenado à permanente vigilância, diante daqueles povos que se mantêm sempre à espreita para espoliá-lo, como fizeram os europeus por séculos a fio. E, agora, ao que parece, fazem os chineses, os colonizadores do século XXI, que estão a explorar as florestas do Norte de Moçambique até o ponto de transformá-las em vasto deserto. Sem esquecer aqueles que saem do próprio povo africano – que, afinal, é resultado de muitas e distintas etnias – e que, no poder, acabam também por espoliá-lo. Mas essa não é uma característica do africano, mas da espécie humana, seja lá qual for a sua matiz de cor.
Portanto, não se quer dizer aqui que, se a África tivesse ficado imune à presença do europeu e de povos como indianos, hindus, goeses, mouros, cojás e tantos outros que a assolam desde tempos avoengos, teria tido um destino melhor. Ou que, hoje, seria um continente sem problemas, um paraíso terrenal em que Deus pudesse passear tranqüilo no jardim pela viração do dia.

Pelo contrário. É provável que estivesse imerso em mais obscurantismo, ao menos sob o prisma da visão eurocêntrica que nunca iremos perder. Não é isso o que se contesta aqui: até porque essa é uma opção irremediavelmente perdida na História. E que remete ao lamento do poeta Manuel Bandeira (1886-1968) sobre a vida que podia ter sido – e que não foi.

A África é o que é hoje. E ponto final. Entrecruzamento de raças e etnias, suas mazelas – a miséria de muitos povos, a falta de perspectivas para muitos, a opressão de uma classe sobre outras – são iguais às de todos os homens que vivem na Terra – uns mais, outros menos. Uma espécie de Brasil nenhum pouco às avessas. Se aqui o partido que se dizia de esquerda e defendia os oprimidos chegou ao poder pelas vias da democracia chamada burguesa e, naturalmente, não o quer largar, ainda que tenha de recorrer a meios inconfessáveis, ao estilo das antigas máfias napolitanas, lá o partido dos oprimidos, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), alcançou o poder pela força das armas, depois de ter, primeiro, colocado o colonialismo para correr e, em seguida, em meio a anos de contendas e mortandades, destruído pelos fuzis adversários que tinham os mesmos objetivos.

No poder, num congraçamento entre “marxistas-leninistas arrependidos” e oportunistas incrustados nas máquinas partidárias, tanto lá como cá, os partidos e seus dirigentes logo esqueceram os miseráveis que tanto defendiam, deixando-se levar pelas delícias do dinheiro fácil das grandes corporações nacionais e internacionais, que, afinal, ninguém é de ferro e a vida é uma só e tem de ser vivida à larga, ainda que à custa da dilapidação do patrimônio público, da corrupção generalizada, do gangrenamento da vida da nação e da destruição dos bens naturais do país. Tudo em troca de “consultorias”, “sobras de campanhas” ou “numerário não contabilizado”, conhecidos eufemismos brasileiros para a maldita taxa de corrupção e outras formas de enriquecimento ilícito. Obviamente, sempre revestidas por “bazófias patrióticas”, como diria o autor.

É o que se pode sentir neste romance de Cabrita, um retrato de uma África pouco conhecida no Brasil, mas facilmente reconhecível, que se desenha na vida de meia dúzia de personagens: César, luso-moçambicano, professor e escritor de romances policiais; Raul, amigo de César, policial; Beatriz, mulher de César e professora universitária na área de Literaturas Africanas; Argentina, concubina de César por dez anos e gestora numa ONG; Aurora, antiga ama-seca de César e sua cozinheira; e Filipa, irmã de César e médica. Além de outros personagens secundários apenas citados, como a famosa atriz Rita Hayworth (1918-1987), estrela de Gilda (1946), que, entre outros casamentos, viveu com o príncipe Aly Khan, de 1949 a 1953, num palácio na Ilha de Moçambique, para quem, no romance, Aurora – provavelmente, macua ou maconde – teria prestado serviços culinários.

Por trás de tudo, um pano de fundo facilmente reconhecível: uma estrada de terra batida é aberta só para que presidentes (das câmaras) de duas cidades e secretários do partido se visitem; um presidente da câmara de Maputo é atropelado de modo acidental, mas ninguém acredita na versão oficial; enfim, crimes que nunca se explicam, como aquele com o qual o policial Raul se vê às voltas com investigações a respeito de pessoas que desviaram dinheiro para o partido, mas para os quais o partido volta as costas. Como nesse tipo de regime o agente policial anda sempre sobre o fio da navalha, dependendo das facções que estão no poder, Raul trata de colocar as barbas de molho, pois teme que o seu fim possa estar próximo. E pede a César, que nunca teve filhos, que leve o seu “miúdo daqui para fora”, pois não quer que fique com a mãe, em Quelimane, pois “isso seria condená-lo a uma vida medíocre...”. (pág. 159).

Observador arguto do linguajar moçambicano, Cabrita constrói os diálogos com fidelidade à oralidade, o que permite suspeitar que, em pouco tempo, o idioma de Camões estará totalmente substituído pelo de Shakespeare não só em terras que foram do sultão Mussa Bin-Mbiki como em todo o antigo e vasto império Monomotapa e nas antigas terras do reino do Ndongo, cobrindo todo o “mapa cor-de-rosa” imaginado, um dia, pelos colonialistas lusos. Até porque a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como organismo internacional, não passa de uma bela fantasia. E, até prova em contrário, pouco faz em defesa da lusofonia. Que o digam os rebeldes da Casamansa, província do Senegal, que desde 1982 empreendem uma inglória guerra de guerrilha para se livrar da opressão do governo de Dakar e virar país independente na órbita da CPLP.

Cabrita nasceu português de quatro costados, pois é do Pragal, freguesia do concelho de Almada, cidade do distrito de Setúbal, que fica à entrada do rio Tejo, em frente a Lisboa. Mas, como muitos de seus ascendentes, achou de tentar descobrir na África, não a árvore das patacas dos quinhentistas, porém outra maneira de viver. Quem sabe, menos morna e asséptica, porque sob o sol africano e em meio a ameaças físicas e até contagiosas. Como gosta de viver na contramão, foi para Maputo há poucos anos, a uma época em que raros lusos se dispõem a ir para a África e os que de lá retornaram choram até hoje o “império colonial derramado”. Não se arrependeu, pois encontrou material, o chamado “tecido da vida”, para escrever novas e surpreendentes histórias como estas que o leitor brasileiro tem a oportunidade de conhecer.

O que se lê neste romance, para quem conhece a vida nas favelas e subúrbios das grandes e médias cidades brasileiras, não haverá de surpreender. Talvez uma ou outra expressão autóctone que o escritor esclarece devidamente em notas de rodapé. Um personagem era bem visto pela comunidade porque colocara a filha a estudar – já estava na 11ª classe –, ainda que o seu verdadeiro negócio fosse o tráfico. Outro, que exibia uma cara da ratazana, tinha duas mulheres e nove filhos e vivia de biscates. Um terceiro, professor primário, fora abandonado pela mulher, depois de tê-la espancado até quase à morte, com oito meses de gravidez, por causa de ciúmes do pastor.

Em meio a uma natureza paradisíaca, a violência doméstica é corriqueira em algumas aldeias, onde o isolamento parece enlouquecer os homens. “As pessoas catanavam-se à primeira, por medo, cativos. À mínima tensão o marido acusava a mulher de feitiço e a família dele acabava por cataná-la, a cobro da noite (...)”, diz Beatriz (pág. 200). Catanavam-se, ou seja, cortavam-se com facão.

O estilo de Cabrita é de fácil e envolvente leitura, ainda que os capítulos em flash nem sempre permitam acompanhar o foco da narrativa ou o fio-condutor da trama com facilidade, exigindo novas e detidas leituras. O texto, porém, vale por si mesmo, pois não deixa de explorar todas as técnicas desenvolvidas pelos grandes mestres da literatura. Com mestria, Cabrita recorre ao discurso indireto livre sempre que pode: “(...) A sua mãe, farta daqueles modos, resolvera voltar a casa e levar as crianças, advertindo-a na porta, esta gente não presta, se armarem confusão fala com o polícia do sétimo”. (pág. 19).

A história, porém, é conduzida em torno de César, uma espécie de alter ego do autor, professor, intelectual que vive rodeado de livros, casado com Beatriz, mas que teve uma amante com o sugestivo nome de Argentina. Filho de “boa família portuguesa”, que é como se diz daquelas famílias que conseguiram amealhar um bom patrimônio e dinheiro no banco, César não hesita em chantagear o pai, em troca de que este o deixe levar consigo a amante negra para com ele estudar em Lisboa. Afinal, o pai sabe que ele sabe de sua segunda mulher, “a quem instalara casa nas Torres Vermelhas, em Maputo”. O silêncio vem “em troca de uma passagem para Argentina e de um aumento chorudo na mesada”.

Se não conseguiu entrar no curso de Direito como o pai ansiava, enquanto Argentina concluía o de Economia, César ganhou fama com seu primeiro romance policial, a que se seguiram outros. Quando se sentia secar por dentro, retornava a Moçambique em busca de reciclagem e renovação. Depois de anos com Argentina como amante, resolve casar a sério com a professora Beatriz, talvez em busca de uma união estável. Mas aqui não há como deixar de pensar que, para ele, as “pretas” só servem como amantes, ainda que Argentina seja uma mulher extremamente culta. Ranço do racismo colonialista, quem sabe. Mas, quando o casamento com Beatriz entra na fase morna, César volta a Moçambique, atrás novamente de Argentina, que, a essa altura, também voltara para a África de olho num mestrado no Zimbábue.
Quando está às vésperas de reatar com Argentina, quem sabe para finalmente constituir uma família e uma velhice tranquila para ambos, o destino o leva para outro rumo. Por lealdade a Raul – morto numa cilada em Quelimane, provavelmente por um colega de profissão, vítima de alguma intriga política –, terá de assumir o filho do outro para colocá-lo longe da África. E garantir-lhe uma vida melhor.

Eis a metáfora de volta: na África nunca ninguém poder dormir, o que significa que não se pode esquecer o passado, essa assombração que vai aonde quer que se vá. Em outras palavras: como não podem esquecer o que lhes fizeram, os africanos não conseguem superar o ressentimento e atingir o perdão. Nem perdoar os outros nem a si mesmos. Essa é a maldição que paira sobre a África. A maldição de Ondina.

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* Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)

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